segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Em Tempos de Tintas Digitais: Escritos e Leitores - Parte II

Por Eliana Rezende

Em um post anterior, procurei abordar as questões referentes a fluidez de escritos propiciada por diferentes suportes neste principio de século XXI e os desafios que se colocam à profissionais das áreas das Ciências Humanas.


Se num primeiro momento concentrei-me nas formas e possibilidades de escrita, neste outro momento estarei atenta a desenvolver outra perspectiva:

Em outra margem e não menos importante, teremos a leitura.
Tal como várias outras formas de aprendizagens, sociais e culturais, obedecem a determinados códigos: haja visto que até a forma como deslocamos nosso olhar indica uma ordem que, para o ocidental, vai da esquerda para direita e de cima para baixo. Convenções estas que se colocam como contexto/parâmetro para que a  leitura se dê. A seguir, procede-se à leitura propriamente dita e que muitas vezes não é feita palavra por palavra. Em geral essa leitura possui uma forma geométrica, semelhante ao desenho da letra F.

Acompanha essa forma de leitura um código postural e gestual: que nos dias de hoje é feito, em geral, silenciosamente. A leitura em voz alta é utilizada em situações específicas com objetivos claros: em geral como meio de ter atenção para o que se lê, e aí pode ser uma situação pessoal ou nas formas clássicas de aprendizagem por iniciantes. Lemos com todo o nosso repertório social , cultural e pessoal (este composto por experiências sensoriais e intelectuais). Escrito por: Eliana Rezende - Curitiba, Maro de 2014
O bom leitor será arguto, profundo e fará conexões com outros escritos e experiências anteriores presentes em seu repertório. Conexões de sentido e apropriações serão bem vindas.


Com os suportes em formato físico as experiências táteis e sensoriais, serão muito maiores, não precisamos de intermediários como: aplicativos, tecnologias, gadgets em geral. Basta-nos a experiência do silêncio da alma e a inquietude do espírito. A viagem se dará e fronteiras serão rompidas.

Roger Chartier usa a expressão “códigos de leitura” e sua aplicabilidade ao campo da leitura de imagens também procede. Se pensarmos na fotografia, temos o fotógrafo nos dirigindo o olhar e nos indicando para onde, e o que olhar. Caberá ao espectador filtrar isso e aplicar sentido ao que vê.

Essa forma de argumento pode ser aplicada a diferentes mídias e suportes e, por isso, adoto aqui o termo texto ou escrita independente do suporte, mídia ou conteúdo. Assim pensado, o texto é único, porém com tantas e grandes possibilidades de leitura e interpretação!

Para além dessa ampla produção de novos suportes para o registro de escritas, o mundo contemporâneo também produz outra categoria de leitor e de produtores de conteúdos: não teremos mais epístolas ou registros seriados e linearmente postos.


A escrita e a leitura se colocam de outra forma: a escrita não possui mais o componente de linearidade que conhecíamos e diferentes narrativas podem dar-se. Um blog, por exemplo, que seria em outros tempos um diário, apresenta em seu entremeio escritos, imagens, vídeos, sons e que não se encontram dispostos naquela mesma página.

O leitor, por outro lado, é movido e hiperlinkado para outros rumos. O encadeamento do escrito não é de quem escreve, mas muito mais de quem lê e da forma que escolhe como leitura. É nesse contexto que o documento de hoje é produzido e é  nessa economia que circula, divaga virtualmente, desterritorializado, numa fragmentação veloz de tempos e espaços.

A narrativa se liberta de seu produtor imediatamente após a sua produção e é nesse sentido que paradigmas necessitarão ser revisitados, repensados e intermediados por muitas outras áreas.

Construções identitárias a partir de relações de convívio sociais serão infinitamente mais trabalhosas de se reconstituir pelos pesquisadores do futuro próximo. As trilhas deixadas terão muitas vias, acessos e saídas.

Neste princípio de século XXI sentimos esta transição que é cultural, social e, principalmente, de formatos e tecnologias. Muito natural que sintamos um tempo como se vivêssemos uma vaga. Com certeza  as civilizações que nos sucederem não terão estes questionamentos e poderão achar pueris nossas elucubrações.

Decisivos para essa nova forma de comunicação escrita são os hipertextos e a disponibilidade de tecnologias cada vez mais amigáveis do ponto de vista de compartilhamentos. Nas palavras de Assmann (2000):
[...] Do ponto de vista técnico, o hipertexto foi a passagem da linearidade da escrita para a sensibilização de espaços dinâmicos. Como conceito de conectividade relacional mediada pela tecnologia, podemos definir a hipertextualidade como um vasto conjunto de interfaces comunicativas, disponibilizadas nas redes telemáticas.
No interior de cada hipertexto, deparamo-nos com um conjunto de nós interligados por conexões, nas quais os pontos de entrada podem ser palavras, imagens, ícones e tramações de contatos multidirecionais (links). É importante destacar que o hipertexto contém geralmente suficientes garantias de retorno para que os sujeitos interagentes não se percam e se sintam seguros em sua navegação.
Acomodando-se nesse mundo da quantidade que, em muitos casos, leva ao detrimento da qualidade, temos 140 caracteres (Tweeter) que buscam uma escrita ágil e encontram um leitor pouco atento e muitas vezes sem foco ou concentração. Conexões entre sujeitos e pensamentos potencializam-se e constroem-se. A interlocução chega sempre na horizontalidade e caracteriza-se pela desterritorialização das ideias, de seus sentidos e de seus produtores e consumidores. 

Uma nova cognição se configura e denota uma forma diversa de pensar  relações e a construção de diferentes saberes.

Outra vez, Assmann afirma: (2000) sobre cognição e aprendizagem:
[...] As novas tecnologias da informação e da comunicação já não são meros instrumentos no sentido técnico tradicional, mas feixes de propriedades ativas. São algo tecnologicamente novo e diferente. As tecnologias tradicionais serviam como instrumentos para aumentar o alcance dos sentidos (braço, visão, movimento etc.). As novas tecnologias ampliam o potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagens cognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidade imensa de insumos informativos está à disposição nas redes (entre as quais ainda sobressai a Internet). Um grande número de agentes cognitivos humanos pode interligar-se em um mesmo processo de construção de conhecimentos.

[...] Isto significa que as tecnologias da informação e da comunicação se transformaram em elemento constituinte (e até instituinte) das nossas formas de ver e organizar o mundo. Aliás, as técnicas criadas pelos homens sempre passaram a ser parte das suas visões de mundo. Isto não é novo. O que há de novo e inédito com as tecnologias da informação e da comunicação é a parceria cognitiva que elas estão começando a exercer na relação que o aprendente estabelece com elas.

[...] Em resumo, as novas tecnologias têm um papel ativo e co-estruturante das formas do aprender e do conhecer. Há nisso, por um lado, uma incrível multiplicação de chances cognitivas, que convém não desperdiçar, mas aproveitar ao máximo. Por outro lado, surgem sérias implicações antropológicas e epistemológicas nessa parceria ativa do ser humano com máquinas inteligentes."


Ações, escritos e produções se fazem cada vez mais com o que se chama de “desintermediação”. Em toda a história do homem, intermediários eram necessários para que a comunicação se fizesse e gerasse informação relevante. Hoje, contudo, tal necessidade deixou de existir e as relações passam a ser cada vez mais desintermediadas.

Nas palavras de Lévy:

[...] Até agora, o espaço público de comunicação era controlado através de intermediários institucionais que preenchiam uma função de filtragem e de difusão entre autores e consumidores de informação: estações de televisão, de rádio, jornais, editoras, gravadores, escolas, etc. Ora, o surgimento do ciberespaço cria uma situação de desinformação, cujas implicações políticas e culturais ainda não terminamos de avaliar. Quase todo mundo pode publicar um texto sem passar por uma editora nem pela redação de um jornal. O mesmo vale para todos os tipos de mensagens possíveis e imagináveis (programas de informática, jogos, músicas, filmes, etc). Passa-se assim, de uma situação de seleção a priori das mensagens atingindo o público a uma nova situação, na qual o cibernauta pode escolher num conjunto mundial muito mais amplo e variado, não criado pelos intermediários tradicionais.
Nosso tempo assiste a noção de que os meios digitais, são antes de tudo, uma metalinguagem que conseguiu fazer com que todos os conteúdos e formatos fossem libertados de seus suportes analógicos. Com isto, novas relações se constituíram e ainda estão em constituição. Infinitas composições, agrupamentos e criações se fazem, se fundem e nunca temos algo que esteja acabado e pronto.

Neste ambiente, a constante renovação e substituição, é imprescindível e alcança maior autonomia na mesma medida em que as inovações tecnológicas chegam. Muitos autores em obra aberta (wikis, por exemplo) acrescentam e são acrescidos a todo momento até que a mesma é dada por encerrada e colocada para ser consumida por leitores igualmente ávidos. Muito mais seduzidos pela novidade em si do que propriamente pela reflexão aprofundada dos temas expostos.

fonte: http://pensadosatinta.blogspot.com.br/2014/03/em-tempos-de-tintas-digitais-escritos-e_23.html

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