quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Reflexão sobre a linguagem


Por: Mirta Castedo 

Para que serve a reflexão sobre a linguagem na escola? Qual é o propósito de incorporar a reflexão sobre a linguagem no currículo da Educação Básica?
Porque, por meio da escola, esperamos que todos possam explicar a linguagem e seus efeitos, que esta possibilidade não fique restrita às experiências pessoais, que a escola siga cuidando, também disso, para oferecer a todos as mesmas oportunidades.
Qualquer leitor de jornal percebe que nem todos são escritos da mesma forma. Sabe-se que um jornal não é escrito do mesmo modo que o outro, que "um causa riso e outro não"; que um faz uso da ironia e apela a um conhecimento ideológico implicitamente compartilhado entre o jornalista e o leitor e o outro não. Todos sabemos como se consegue esse efeito de ‘posição assumida’ em um e de ‘senso de objetividade’ em outro? Todos nos damos conta do recurso que provoca o efeito? Certamente não. Percebemos alguma diferença, mas o grau de consciência sobre a diferença é distinto, em grande parte, porque alguns aprenderam a identificar os recursos de linguagem que estão em jogo nesta e em outras situações.

Isso significa compreender profundamente as dimensões sociais, linguísticas e cognitivas das práticas de linguagem e não somente exercê-las sem maior consciência.
É função da escola fazer com que todos compreendam a complexidade da cultura escrita, o que inclui não somente compreender o mundo, mas também como a linguagem se refere a ele e como o que é dito se modifica de acordo com as infinitas combinações que a linguagem permite.
A ação educativa é limitada pelas possibilidades de assimilação dos sujeitos, uma vez que é uma das mais importantes mediações sociais para a maioria da população: a intervenção deliberada do adulto promove uma micro-história de experiências formativas particulares que incidem nos estados de assimilação do sujeito. Para a maioria, a reflexão proposta pela escola será decisiva porque será a única feita de forma sistemática.

As possibilidades de uso da linguagem são aprendidas. Em grande parte, como muito do que sabemos neste campo, são aprendidas enquanto a linguagem é posta em ação na interação com outros praticantes da língua. E em grande parte se aprende porque alguém lhe ajuda a perceber as possibilidades e a usá-las melhor. E é com este intuito, de ensinar a perceber e a usar cada vez melhor, que está a ação escolar. Paralelamente a isso, uma consequência inevitável, embora desejável, é que à medida que se aprende a usar conscientemente, também se aprende sobre o próprio objeto, a linguagem, sobre seus elementos e suas relações.

Além de "saber fazer" é necessário saber "o porquê" e saber "como fazer". Isto é, saber algo que antes não sabia. "A tomada de consciência é um processo de conceituação que reconstrói e ultrapassa o plano da semiotização e da representação que havia sido adquirida no plano dos esquemas de ação. Não se trata de uma mera transposição da ação para a representação, mas de uma reconstrução que, através da ação reflexiva, dê lugar a coordenações conceituais que englobam e ultrapassam de vez os objetos concretos e os esquemas especícicos a eles relacionados."
Por isso, ensinar a refletir sobre a linguagem é algo mais que somente oferecer oportunidades para usá-la.

Como trabalhar essas noções no contexto escolar

Há vários momentos diferentes a considerar. Resumidamente, temos:
- É preciso garantir uma prática de escrita genuína, na qual se construa a reflexão, mas sem desvincular a reflexão da produção.
- Sempre que for pertinente, deve-se vincular o conhecimento gramatical com outras dimensões da reflexão, por exemplo, com os efeitos enunciativos ou pragmáticos, ou quando vinculamos a morfologia das palavras com a ortografia.
- Desenhar situações em que os alunos possam realmente compreender os objetos de aprendizagem, em vez de repetir e memorizar. Ou seja, situações em que tenhamos certeza de qual é a atividade cognitiva que estamos propondo ao aluno. Por exemplo, consideremos problemas de verbos como os modais e os não modais; ou de tempos verbais simples e compostos; ou os problemas morfológicos relativos a famílias de palavras, derivações e flexões, muito importantes tanto para o próprio conhecimento como por sua utilidade para construir conhecimento ortográfico; ou ainda problemas de pontuação da escrita.

Três estratégias para trabalhar a análise linguística
Para favorecer a compreensão por parte das crianças (em vez de transitar simplesmente pela explicação do professor, como, por exemplo, nos exercícios de reconhecimento e de reprodução do mesmo tipo de exemplo), pensamos em três tipos de situações:

1) As situações que se desenvolvem durante o processo de produção, com o propósito de resolver problemas da produção, ou seja, em situações contextulizadas no processo.
Por exemplo, quando a professora dita, quando se escreve em duplas ou quando se relê para revisar o que foi produzido. Tendo em conta que não é a prática em si mesma que gera reflexão em todos os casos, o docente tem de intervir ativamente para que esta reflexão ocorra, por exemplo:
- selecionando os casos a analisar;
- selecionando trechos para releitura e análise;
- recuperando notas ou textos já lidos que ajudem a "ver" como se pode solucionar um problema.
2) As situações que se afastam do texto que se está produzindo para elaborar conhecimento e retornar imediatamente ao texto para resolver o problema que veio à tona.
3) Situações descontextualizadas, por fora do processo, que buscam:
- coordenar saberes que apareceram em contextos diferentes;
- "complementar" aquilo que não havia aparecido no contexto das práticas;
- gerar validações provisórias, mas recuperáveis para todos os contextos de produção futuros.
É claro que estas situações existem porque o docente as propõe. Em último caso, é primordial a intervenção que recupere o conhecimento construído durante a produção não mediada.

Pode-se propor:
- classificar enunciados;
- comparar semelhanças ou diferenças entre casos selecionados;
- completar um texto;
- modificar uma dimensão de um texto;
- selecionar casos de um conjunto;
- explicar as razões etc.
Ou seja, propor situações em que fique claro qual é a atividade do estudante e que a mesma não seja repetir e aplicar mecanicamente.

O desafio para a escola não é apenas o que se ensina, mas como o que se ensina se conecta com outras aprendizagens. Na verdade, estes saberes estão vinculados nas disciplinas e não existe sequer um acervo de saberes consolidados para fins de ensino. Qualquer que seja o caso, sempre se trata de categorias.
Como sabemos que enunciados tão diferentes como "Bom dia!" ou "Ei, cara, beleza?", podem ser considerados "saudações", sob certas condições do contexto? Não usam o mesmo vocabulário, não têm a mesma estrutura sintática, é provável que não surjam entre pessoas com igual grau de familiaridade ou de idêntico extrato sociocultural. Entretanto, reconhecemos, sem maior esforço, algo igual diante do diferente. Abstraímos alguma identidade diante de objetos diferentes.

Como sabemos sobre a diferença de sentido de um enunciado idêntico pronunciado/lido/produzido em diferente contexto e/ou entonação? Por exemplo: "Te desejo o melhor". Pode ser perfeitamente usado no sentido oposto, dependendo do contexto. Como sabemos o que quer dizer em cada caso, especialmente quando está escrito e não sabemos de sua entonação? Isto é, percebemos a diferença em algo que tem muito de idêntico: as mesmas palavras e na mesma ordem.

Palavras, tipos de palavras, orações, modos verbais, sílabas, contextos, intencionalidades, enunciados, posições enunciativas, falas etc... categorias que são produtos de uma simplificação - que deixa de lado a diferença - e de uma abstração - que põe em evidência a identidade -, que permitem "construir equivalências entre certos objetos aparentemente muito diferentes".

Abstrair para entender é parte da atividade intelectual de qualquer ser humano e, dado que na experiência linguística não lidamos com objetos materiais, mas simbólicos, abstrair é coordenar qualidades comuns construídas sobre práticas produzidas de diferentes posições, pontos de vista ou contextos; uma das formas de abstração reflexiva mais sofisticadas que é capaz de produzir o ser humano. É produto da experiência linguística, tanto ao falar como ao ler ou escrever.

Por que "submeter" as crianças a um processo tão exigente? Porque ao categorizar se alcança certa compreensão do mundo que é categorizado, neste caso, as práticas de linguagem e seu funcionamento em seus diversos contextos, os discursos e os textos aos quais estas práticas dão lugar e a língua que permite construi-los. É porque se fala, se lê ou se escreve e, em tal contexto, se participa de experiências em que se tem êxito na compreensão ou se fracassa, se retifica ou ratifica um caminho para encontrar a resposta a uma questão específica em um texto, se modifica parcialmente uma ideia ao se dirigir a outro para ser melhor entendido, se descobre a intenção do outro ao fazer entender algo não imaginado, se distribui um texto na página de maneira a ser melhor compreendido ou se amplia a informação de uma imagem através de uma legenda, que se constrói conhecimento sobre a linguagem.

Não se trata de um conhecimento externo às práticas, que se aplica à linguagem. Não se trata de um conhecimento interno do sujeito que amadurece ou se ativa.

Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-2/mirta-castedo-reflexao-linguagem-gramatica-693316.shtml

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