segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Materialidade dos Dispositivos de Leitura Eletrônicos

Pesquisador de cibercultura, André Lemos conta que nunca leu tanto como quando comprou um Kindle. E acredita que em pouco tempo os livros impressos serão peças de coleção. Da mesma forma as livrarias se tornarão lugares para leituras especiais de livros impressos especiais.



André Lemos

A Amazon.com acaba de anunciar que suas vendas de livros eletrônicos superaram a venda de todos os livros em papel. Esse é um marco na atual reconfiguração da cadeia produtiva dos livros, para escritores, editoras, distribuidores e leitores. Comprei um Kindle e estou lendo mais do que nunca. Voltei inclusive a ler jornal (e não clicar em links nos jornais online), assinando alguns periódicos (coisa que não fazia há muito tempo). A tinta eletrônica é excelente e a tela parece papel. Por não ser iluminada, ela garante um grande conforto. Esse conjunto de características faz da leitura uma experiência muito similar à leitura de um livro em papel, de um jornal ou revista impressa. Voltarei à essas diferenças mais adiante. Além do mais, não há pirotecnias (o que sempre me incomodou em CD ROMs, DVDs e livros interativos), é ligar e ler, simplesmente. Há muitas vantagens como o acesso ao dicionário ao posicionar o cursor próximo a alguma palavra, marcação e notas que podem ser estocadas e compartilhadas no Twitter, compra e acesso imediato de livros, revistas ou jornais (sem espera ou pagamento de fretes), portabilidade e acesso a uma biblioteca de até 3 mil livros em um único dispositivo de 300g, permitindo ao leitor ler aquilo que o “momento” lhe pede; e algumas desvantagens: a bateria, embora a do Kindle dure quase um mês sem o Wi-Fi/3G ligados, e para os que ainda estão materialmente presos ao papel, não há o cheiro ou o manuseio das páginas e nem dá para riscar do lado com um bom lápis. Mas não se trata de colocar um dispositivo contra o outro (continuo lendo livros em papel e clicando em links nos jornais online), mas de entender a emergência de novas formas de leitura já que, desde sempre, o suporte vem mudando. Deve-se reconhecer a mobilidade dos textos dos dispositivos de leitura.

Devemos pensar a materialidade dos suportes. Sempre é preciso adaptação. Tenho como hipótese que sempre que o suporte material cria hábitos corporais e práticas específicas de uso, a sua incorporação aos costumes é mais lenta e enfrenta mais resistências. Para um mesmo conteúdo, trocar os suportes, nesses casos, é sempre mais difícil. Vejamos alguns exemplos no caso do cinema ou da música. Ir ao cinema não é equivalente à experiência de ver um filme em DVD em casa. O conteúdo pode ser o mesmo, mas cinema é corpo em um ambiente. A materialidade desse conjunto de dispositivos comunicacionais (o sala, a película, o som, a luz, os espectadores, a presença de outros espectadores, a impossibilidade de interagir e interferir na visualização etc.) é bem distinta daquela de uma sala onde se assiste ao mesmo filme em um DVD, por exemplo. O corpo pede, por assim dizer, o cinema e por isso ele não é “dispensado”. Com a música é diferente. O suporte não importa, mesmo que o lugar da audição seja sempre importante. O que conta é o “onde” (o lugar importa muito e sempre, mas ele é independente do suporte) e quando se ouve. Não há manipulação (o corpo que toca) do suporte (vinil, fita, CD, DVD). Não interessa muito se o que se ouve está em um CD, MP3 ou Vinil (mesmo que existam idiossincrasias de uma minoria nessa escuta e alguns prefiram determinados suportes). Da mesma forma que o cinema, os concertos não são substituídos pela audição em casa.

No caso dos livros, o objeto que dá suporte ao texto é muito sensorial e o corpo identifica a prática de leitura exigida por esse suporte. Mesmo que o conteúdo a ser lido seja o mais importante, a prática da leitura está muito condicionada pelo suporte. Daí a dificuldade (decrescente, já que a venda de e-books tende a superar a de livros impressos) em aceitar os leitores eletrônicos. Acredito que em pouco tempo os livros impressos serão peças de coleção, de edições especiais, comemorativas, ou quando o suporte material for a tônica maior da obra. Da mesma forma as livrarias se tornarão lugares para leituras especiais de livros impressos especiais. As livrarias continuarão a existir, mas cumprindo outro papel. Não o de um grande bazar de todos os livros, mas o de um lugar de obras especiais. De fato isso já acontece com as pequenas livrarias em relação às grandes. Elas continuam a existir como um lugar diferenciado do grande bazar, sendo um espaço para maior proximidade com livros especiais (por serem impressos) e com outros leitores, com vendedores diferenciados (em muitas livrarias são até os próprios escritores) etc. Para a leitura quotidiana, os formatos eletrônicos vão superar os impressos. Eles serão complementares. Talvez a “era do impresso” tenha sido apenas um parêntese (o “parêntese Gutenberg”) na história da leitura e da escrita.



Materialidade e novas práticas: impresso, e-readers e tablets

O jornal impresso tem o papel como suporte, onde os caracteres estão previamente fixados. Ele é um produto acabado, como uma temporalidade própria (quotidiano em sua maioria) que indica uma determinada postura corporal (sentado, folheando as páginas) e momento especial de leitura, mais focado, já que o produto é oferecido de forma finalizada ao leitor. Ele é barato, portátil e descartável. Já o jornal na web é aberto, com conexão entre links que oferecem possibilidades de leituras mais rápidas e eficientes. Os caracteres (agora eletrônicos) fixam-se por demanda, a cada clique, aparecendo em uma tela iluminada, desaparecendo a cada navegação. Não há um fechamento temporal já que no jornal na web as atualizações das matérias são constantes e, diferentemente do impresso, há formatos multimidiáticos e interativos. Esse produto jornalístico oferece ainda a possibilidade de acesso à arquivos em bancos de dados criando uma gigantesca memória informacional disponível através de alguns cliques. A postura corporal, por sua vez, é bem diferente daquela do leitor do jornal impresso. O corpo curva-se sobre uma máquina, através de uma interação indireta (através de mouse e pads, diferente dos tablets e e-readers cuja ação é mais direta, semelhante a manipulação do papel). Além disso, convoca uma posição parecida com aquela de quem trabalha com computadores.

Um jornal em um leitor eletrônico, como o Kindle, por exemplo, retoma a idéia de um produto fechado, como o jornal impresso, com uma temporalidade também delimitada (a edição do dia). Ao clicar para “baixar” o jornal (comprando um exemplar ou fazendo uma assinatura), o usuário tem a versão do dia, similar à versão impressa. Os caracteres digitais fixam-se por uma “tinta eletrônica” em uma tela sem luz que emula (bem) o papel. Assim, o e-reader procura trazer de volta a experiência de se ler um livro ou um jornal em papel. Embora o dispositivo de leitura seja portátil, como o jornal impresso, ele amplia as possibilidade de acesso já que o usuário pode, em um clique, receber um exemplar em qualquer lugar do mundo, em segundos (por redes sem fio – Wi-Fi ou 3G). Pode-se ainda acumular os exemplares sem que com isso tenha que carregar os cadernos impressos (ou os livros). Com um conteúdo fechado (como um livro ou um jornal impresso), a leitura é mais “focada”, diferente do “surf” na web. A postura corporal também é diferente, seja daquela do jornal na web, seja da leitura do jornal impresso: os cadernos não são abertos em movimentos amplos dos braços, e não se está sentado com o corpo curvado em direção a um computador. A leitura é próxima daquela de um livro (as duas mãos diante dos olhos).

Já a leitura de um jornal ou de um livro em um tablet, como o iPad por exemplo, não é nem como a leitura de um jornal impresso, nem como um jornal na web, nem como a leitura em um e-reader (embora se assemelhe muito e acho mesmo que virão a se fundir no futuro próximo, aliás só há futuro próximo!). O tablet utiliza aplicativos adaptados ao dispositivo. A informação é fixada em uma tela iluminada (bem diferente do conforto dos e-readers) oferecendo a possibilidade de uma postura próxima daquela de quem lê um livro (e diferente daquela da web). Mas o conteúdo pode ser outro, mais aberto, com links, interativo, multimidiático, adaptado à tela “touch-screen” e aos movimentos de rotação do equipamento, como os primeiros livros eletrônicos em CD-ROM! Por exemplo, ao usar o acelerômetro (rodá-lo e colocá-lo na horizontal ou vertical) uma imagem pode se transformar em um vídeo, por exemplo. A tela tátil permite uma interação mais complexa e intuitiva do que aquela com o teclado para a web, ou as teclas para passar as páginas de um e-reader. A ação corporal é diferente daquela do impresso ou da web, e bem mais próxima dos e-readers, embora a interatividade crie novas exigências de apoio do dispositivo, ou de movimentos característicos.

Nesse rápido exemplo, vemos como uma análise da materialidade revela diversos agentes (dispositivos, produtores de textos, designers de software, de imagens e de sons, usuários e suas práticas e hábitos corporais, lugares constituídos, distribuidores, escritores etc.) que atuam diferentemente a depender do conteúdo, do dispositivo e das práticas corporais. Temos que analisá-los a partir dessa rede de atores que compõem, de hoje em diante, as práticas de leitura e da cadeia de produção e distribuição dos livros. Todos esses atores, humanos e não-humanos (Latour, 2005), têm um papel fundamental no processo de constituição da atual mobilidade dos processos de leitura e de escrita. Isso não é uma novidade, mas devemos considerar a sua dimensão atual. Sabemos que as transformações são uma constante na história da leitura, da escrita e do desenvolvimento dos suportes (tabuletas, pergaminhos, papiros, códex, computador, internet, celulares, e-readers, tablets…).



Referências

BLOOMFIELD et. al., Bodies, Technologies and Action Possibilities: When is an Affordance? in Sociology. 2010; 44; 415 DOI: 10.1177/0038038510362469. Versão disponível http://soc.sagepub.com/cgi/content/abstract/44/3/415

DARTON, R. A Questão dos Livros. Passado, presente e futuro. SP. Cia das Letras, 2009.

DARTON, R. Cinco Mitos sobre a Idade da informação. in Observatório da Imprensa, disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=638JDB027

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